Olá! Aguardo sugestões de filmes que achem interessantes ver (e ouvir!) tendo em mente a ideia da música como criadora de significados relevantes para a percepção de espaços interiores (dentro da personagem), exteriores,transcendentes,superficiais, oníricos,... Bem sei que o termo espaço ainda não está bem esclarecido, mas tentarei fazê-lo em breve.
Após uma análise da música presente nos filmes da Trilogia de Van Sant mencionados no primeiro post, ficou a vontade de continuar a reflexão “espacial” (primeiro móbil deste blog), se possível em filmes com algum contacto com aqueles três. Logo me chamou a atenção Into the Wild, realizado por Sean Penn, talvez por colocar um jovem isolado na natureza, o que igualmente acontece em Gerry (2002) e também de algum modo em Last Days (2005). O facto de Sean Penn protagonizar o próximo filme de Van Sant, Milk, também ajudou a formar a crença de que duas sensibilidades artísticas como são as destes dois cineastas lançarão um interessante futuro post sobre o Milk (alguém sabe quando estreia?).
Ao nível musical destaca-se claramente a quase constante presença de canções em bom estilo americano (penso que country não será o melhor termo), ora mais animadas ora mais em tom de recolhimento. Quando vi o filme pensei se seriam músicas escolhidas de um repertório já existente (o que ligaria claramente a este procedimento presente na Trilogia), mas não, foram canções compostas por Eddie Vedder (vocalista dos Pearl Jam), especificamente inspiradas na história do filme. Esta é baseada na opção de Christopher McCandless se retirar para a natureza, escapando da falsidade da sociedade e das aparências sustentadas pela sua família. O som puro americano, por vezes com a presença do banjo, mas sempre com a perseverança da guitarra (personificada em McCandless) denota o alcançado distanciamento de um mundo urbano. Talvez por defeito meu não liguei às letras dessas canções, nem conheço os respectivos nomes, mas creio que o que interessa ao realizador são as modalidades que aquelas músicas conseguem produzir. Um exemplo: entendo que uma forte modalidade de saber,poder, ou - se preferirmos – conseguir, está presente na música que acompanha o primeiro dia no autocarro-casa. Nessa música o processo de começar com a guitarra e ir acrescentando instrumentos (não sei se existe um nome para isto; tipo Bolero de Ravel) transmite uma certeza e um domínio de algo que se está a (e se sabe) construir: uma nova vida, de independência.
Uma grande riqueza de significações sonoras acontece na própria alternância entre as mencionadas canções americanas e outros tipos de sonoridades, nomeadamente o tom intimista do quarteto de cordas ou alguns sons de sintetizador, mais dissonantes. Esta alternância não só facilita (algo que nem seria necessário) a percepção dos momentos temporais a que chegamos, após constantes flashbacks ou flashforwards, mas também acaba por clarificar o espaço interiordos principais personagens: McCandless constante, perseverante, puro, contemplativo, intocável; os seus familiares derrotados pela dor (e pela culpa, no caso dos pais), sofredores pela falta do filho e por isso com um grande vazio dentro deles.
O som da voz de sua irmã liga aos sons do quarteto de cordas de uma forma intimista, produzindo uma unidade semiótica temporal, sonora, chamada “em flutuação”. Estas unidades (UST), não tendo sido “descobertas” por pessoas ligadas ao cinema parecem-me muito interessantes e próximas do que será a linguagem dos realizadores, no momento em que indicam o tipo de música pretendido, eventualmente solicitada a um compositor. A unidade semiótica temporal “em flutuação” é descrita semanticamente da seguinte forma, resumida: o excerto musical, mesmo que faça surgir os sons de forma relativamente aleatória, não cria sentimentos de atenção, de “suspense”. Caberá ao compositor/designer sonoro apresentar soluções neste sentido. Em Gerry, de Van Sant, uma obra de Arvo Pärt para piano solo, cria também este “emflutuação” que terá esta função de colocar os personagens numa “estrada sem saída”, à semelhança dos mencionados pais. Se o realizador solicitar uma música que dê a impressão de ir até ao final de um processo (ou esforço), algo como uma elongação, submetida a tensão, criando um sentimento de atenção, estará a pedir a UST chamada “distensão”. Retornando à “Trilogia da Morte”: em Elephant, na cantina, Alex coloca as mãos na cabeça (sinal de espaço interior) perante o manipulado subir do volume do som envolvente. Este crescendo é o processo existente neste momento de “distensão”. No final de Into the Wild o processo é o acelerar de um ritmo regular (“cardíaco”) que culmina na percepção final de McCandless de qual é a Verdade que ele almejava. Este accelerando talvez seja símbolo de um coração – único, por acelerar no momento da morte – que realmente descobriu onde está a felicidade.
Verificámos então que o processo de estender as possibilidades de significação musical a sonoridades às quais normalmente não chamaríamos música é efectivamente empregue no cinema; de uma forma que lembra a “escuta reduzida” proposta por Pierre Schaeffer (fundador da “musique concrète”) e a análise de obras musicais electroacústicas (onde nasceu o estudo das UST). Alguns autores apontam esta música como importante meio de utilização sonora dos três tipos de signo (ícone, índice e símbolo), segundo Charles S. Peirce. É particularmente interessante constatar como, em Into the Wild, um simples som de sintetizador, tipo voz cantada, parece ser índice de destino divino, assinalado visualmente na impossibilidade de atravessar o rio e recuperar o chapéu outrora deixado para trás (chapéu como índice visual de um passado ao qual não retornará?).
Para terminar questiono: Que interpretação fazem dos sons cantados por vozes árabes-ciganas (?). O que significam? E também: Como interpretar os sons alterados de ambulância e de ruído de cidade, quando McCandless procura um quarto para dormir, junto dos sem-abrigo?